quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Microfonia

Ah, aquelas vozes!
Confundem-se umas com as outras,
elevam-se, impõe-se, oprimem.

E ali estava o quieto,
que um dia tentou falar,
mas diante de tanta arrogância,
preferiu mesmo o calar.

A sinfonia da insolência
continua a tocar.
Exibem as melodias autoritárias
de quem pode e quem não deve falar.

sábado, 5 de dezembro de 2009

3x4

Desde moleque colecionava fotos 3x4 de todas as pessoas que conhecia.
Aos trinta anos possuía aproximadamente sete mil e quinhentos retratos. Decidiu, então, juntar todas as fotos, desocupar o seu quarto e preenchê-lo completamente com todas as fotos.
Começou por uma das paredes. As fotos não seguiam nenhum tipo de ordem. Aleatoriamente, seu avô quando tinha setenta anos ficou ao lado de Gabriel, seu amigo da terceira série. Abaixo, estava sua quinta namorada Fabíola e o seu excêntrico moicano, seguida de tantas outras pessoas das mais variadas origens.
No teto estavam a sua mãe, com trinta e oito anos e algumas rugas à vista, Seu Orlando da padaria com a sua cara de sério alimentada pelos óculos na ponta do nariz e Matilde, a babá de sua irmã Melissa, que por sua vez estava próxima do rodapé com seus três aninhos e seus dois dentinhos.
Johnny, seu vizinho da Rua Almeida, fazia cara de assustado na parede oposta àquela onde estava o seu pai, com quarenta e sete anos e já grisalho. Teresa, aquela que pela primeira vez lhe encostou os lábios estava acima de Lindolfo, seu primo insuportável e seus treze anos. Tia Nise, da Primeira Série, sorria logo acima da cara carrancuda de seu tio-avô, Marcos.
O espaço em branco foi sumindo aos poucos e transformou-se num conjunto de pessoas olhando para ele. Estava no meio do quarto e agora era o centro das atenções de todas aquelas pessoas. Gargalhava como um alucinado, conquistava enfim a sua fama e todos lhe dirigiam olhares e sorrisos.

Durou cinco minutos. Então, percebeu a mediocridade de todas aquelas pessoas e seus olhares momentâneos e forçados, seguindo o padrão retangular 3x4. Assim, percebeu a sua própria decadência em desejar mais do que tudo, que todas aquelas pessoas medíocres um dia olhassem para ele, mais um medíocre gargalhando no centro do quarto.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Linha de chegada

Chegando ao final de uma maratona, jamais se pensa no esforço físico e mental realizado para se chegar até ali. O que interessa é atravessar a faixa. Eis a verdade.

E que se fodam as próximas maratonas. No momento eu só quero sentar e tomar uma água. Porra.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Na Livraria

Estante de auto-ajuda:

Best-Seller "O blefe e o sucesso profissional" de J.L. Collins, PhD em Psicologia Social pela Universidade de Harvard.

-Vou levar esse.
-R$ 39,90
-Aqui está.
- Boa tarde e boa leitura.

Arranco o plástico. Não tem nada escrito além da capa.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Partitura da alvorada

Quatro horas e trinta e nove minutos. A luz matutina já esforça-se para quebrar a noite. O discreto lençol negro torna-se levemente azulado, permitindo o reaparecimento de objetos que antes misturavam-se ao breu. A janela do ônibus torna-se uma tela onde é projetada a dança dos reaparecidos postes, que dançam exibindo os seus constantes fios. Erro meu. Parece uma dança, mas trata-se de uma partitura. Cinco fios. Não conheço muito de notação musical, mas tenho a certeza de que a janela me mostra uma pauta. Não faço idéia de qual seja a clave. Mas sigo as linhas com os olhos tentando identificar as notas. Aonde estão as notas? Sigo a pauta. Estou hipnotizado.
Compasso 3/4. Pensamentos distantes e vagos me aparecem em semibreves.
Compasso 4/4. Pensamentos mais constantes e mais fixos no formato de colcheias
Compasso 6/8. Perco-me nos meus pensamentos, misturo a realidade com todos os sonhos , expressos através de semifusas.
Sono.
Pausa.1/64.

Silêncio.

domingo, 15 de novembro de 2009

Alívio

Ainda bem que os trajetos não são iguais aos trilhos.
Ainda bem que dormentes não separam os meus pés.
Ainda bem que os passos não precisam ser paralelos.
Ainda bem que as minhas ferrovias se estendem em infinitos sentidos e direções.
Ainda bem que não sou um trem.

Agora entendo porque choram os trens. Piuíííííííííííííííí...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ressignificação

E eis que o pobre mendigo avistou o homem de terno que vinha em sua direção com um livro debaixo do braço. O velho, assolado pelos anos de vivência nas ruas, ergueu a mão e disse:
- Doutor, você tem um dinheiro ou comida para me dar?
E o homem, que se tratava do pastor de uma igreja protestante, respondeu:
- Tenho algo muito melhor, algo que vai mudar a sua vida.
Retirando o livro debaixo do seu braço, colocou-o na mão do velho proferindo os seguintes dizeres:
- A vós, trago a palavra do Senhor!
E depois disso o pastor continuou a sua caminhada, satisfeito pela sua boa ação, como fizera o Bom Samaritano.
O velho, então abriu o livro em uma das páginas, avistando o título "Gênesis" olhou para o céu e disse:
- Graças a Deus!
Rasgou a página, amassou-a e pôs na boca, mastigando-a cautelosamente.

domingo, 8 de novembro de 2009

Numb

Pesquisas recentes apontam para o crescimento no número de usuários da droga mais devastadora que existe. Os efeitos da droga podem durar uma vida inteira e vão desde alucinações até uma profunda depressão, podendo até mesmo levar ao suicídio no curto prazo.

"A" foi usuário dessa poderosa droga por vários anos e nos relatou como foi difícil largar o vício:
"Pô comecei achando que aquilo ali era o meu melhor refúgio, podia me entorpecer daquilo a hora que eu quisesse e pra mim, aquilo era uma espécie de fortaleza emocional. Chegou um momento que não conseguia mais me livrar e as alucinações eram constantes. Eu não sabia mais o que era vida, cara... Era só aquela porra ali o dia inteiro. Pô eu ficava lá trancado no meu quarto 'desfrutando' toda aquela merda... Já estava ficando paranóico, ria e chorava sozinho e eu te falo mais: só a droga me provocava emoções, foda-se o resto. Chegou um momento em que decidi parar com esse vício, mesmo sabendo que seria muito difícil largá-lo. Comecei tomando a primeira atitude, que foi juntar a porra toda e fazer uma grande fogueira. Aos poucos fui procurando outras coisas e me tornando cada vez menos dependente e vendo que a vida é muito mais do que essa droga, cara... Porra e vou te falar uma coisa importante, acho que grande parte das pessoas possui esse vício e elas não conseguem largá-lo, pois acham impossível. Mas se elas fizerem um esforço, verão que é possível viver com doses moderadas da droga, mas sem depender dela... Pô acho que é isso..."

Não é álcool, cocaína ou crack. A droga chama-se Passado.

sábado, 7 de novembro de 2009

Aspectos da defenestração

Sentia-se leve, era como uma pluma dançando no ar. Uma brisa alisava cautelosamente os seus cabelos e os seus braços eram os remos que conduziam o seu corpo pelo ar. Estava realizado, e as lágrimas rolavam pelo rosto, contornando o nariz e encontrando abrigo no imenso sorriso que estendia-se contra o vento.

Arrebentou a cara no cimento duro.

Naqueles quatro segundos em que o rosto esmigalhado chorava uma dor crônica, descobriu que belos sonhos e vôos altos podem ser extremamente venenosos, especialmente quando combinados com a gravidade.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Sem hipocrisia

- O que você vai ser quando crescer?
- Vou terminar o colégio, depois prestar vestibular para Medicina, Engenharia ou Direito, terminar a faculdade, arrumar um emprego, estabilizar-me, casar-me e ter filhos. Meus filhos terminarão o colégio, prestarão vestibular para Medicina, Engenharia ou Direito, terminarão a faculdade , arrumarão um emprego, se estabilizarão, se casarão e terão meus netos. Descobrirei que tenho algum tipo de câncer, meu corpo degenerará e morrerei.
- ...

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Knockout

Beijou a lona.
Agora só restava levantar e rir da derrota.
Afinal de contas, uma cara calejada sente menos as porradas.

domingo, 1 de novembro de 2009

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Equivalentes

O banco da praça
A multidão que passa
O idoso se senta O jovem se ausenta
O passado só resta O futuro não presta
Velhice odiosa Juventude ociosa
O corpo cansado O coração cortado
A vida sofrida A morte querida
O velho se apresenta O novo o cumprimenta
Aquela nostalgia Aquela agonia
Antigas memórias Recentes histórias
Boa Conversa
Conversa Boa

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A resposta de Pai Afonso

Vivia uma crise existencial. Não sabia quem era, porque estava vivendo e qual seria o sentido da vida. A religião já não fazia mais nenhum sentido para ele. Falaram-lhe então do Pai Afonso, um velho sábio que vivia nas montanhas e que poderia ajudá-lo com o vazio que o atormentava.
Seguiu então até as montanhas, chegando até uma rústica cabana encravada entre alguns pinheiros. Bateu na porta e para sua surpresa encontrou o Pai Afonso, um idoso com um cavanhaque grisalho bem aparado, vestindo um bonito terno Armani. Pai Afonso pediu que entrasse e se acomodasse em um dos lugares do pequeno espaço. Escolheu uma poltrona verde ao lado de um sofá de couro, onde sentou-se Pai Afonso.
Foram duas horas descarregando todas as suas angústias, seus questionamentos internos e seus desprazeres quanto ao ato de viver. Perguntou então:
- Por favor Pai Afonso, você pode me ajudar?
Pai Afonso respondeu:
- Certamente.
Sacou uma Magnum 357 do Armani e acertou um tiro no meio da testa do rapaz.
- Chato pra caralho. Filho da Puta.
Guardou a arma, levantou-se do sofá, jogou o corpo para fora da cabana e foi tomar uma xícara de café.

sábado, 24 de outubro de 2009

Análise combinatória

Construir a identidade individual siginifica selecionar (in)conscientemente elementos diluídos na sociedade. Gírias, roupas, modos de andar, gestos e costumes estão na lista desses elementos. Me pergunto às vezes porque as pessoas gostam tanto da auto-rotulação. "Sou ( )ista". "Sou ( )eiro". Significa certamente um sinal de desejo de pertencimento neste ou naquele grupo. Isso é alienação. Já fui um desses, assumo. Mas diante da enorme variedade e da possibilidade de inúmeras combinações, prefiro não mais ser um "ista" ou um "eiro", mas sim explorar as combinações de acordo com a minha vontade.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Under pressure

Enquanto caminhava pelas ruas de New Haven, li um anúncio procurando voluntários para um experimento social. Um tal de Stanley Milgram, professor em Yale, era o responsável pela pesquisa, que segundo o anúncio seria sobre a memória. Não estava muito interessado em participar de experiências científicas, mas apesar disso acabei procurando o tal de Milgram, principalmente pelos $4 que eram oferecidos aos participantes.
No dia seguinte, preenchi o formulário que vinha logo abaixo do anúncio e me dirigi até a Universidade de Yale. Chegando lá fui recebido por alguns homens de jaleco branco, entre eles o próprio Milgram. Pediram para me sentar e esperar o outro participante chegar. Um senhor entrou na sala e sentou-se ao meu lado. Concluí que aquele homem também participaria.
Um dos homens de jaleco branco começou a nos explicar como funcionaria tudo aquilo. Fui indicado como sendo o professor e o senhor seria o aluno. O aluno responderia a algumas questões de lógicas em outra sala, enquanto eu ficaria encarregado de aplicar uma punição, caso ele errasse a resposta. Achei aquilo esquisito, mas eu queria os quatro dólares. Perguntei qual seria a punição. O homem me conduziu até um aparelho com cerca de duas dezenas de interruptores, cada um deles com uma indicação em cima variando de 15 a 450. O outro voluntário foi conduzido até uma outra sala. O homem então continuou a me explicar o que aconteceria se o senhor errasse a resposta. O aparelho estava ligado a uma cadeira, na qual o aluno ficaria amarrado, e caso a resposta estivesse errada, eu, o professor, teria qu ativar o primeiro interruptor, que indicava 15V. Ou seja, aplicaria um choque ao homem se ele errasse a resposta! E o pior é que conforme ele fosse errando, maior seria o choque, aumentando 15V até chegar ao limite máximo de 450 V. Hesitei bastante, quis até desistir, mas o homem dizia que não havia perigo para o outro participante, que tudo estava sobre controle. Por isso, acabei sentando-me e esperei as ordens do Milgram, que estava sentado próximo a mim para que pudesse perguntar através de um microfone as questões para aquele senhor.
Só para saber como funcionava recebi um pequeno choque de 15V. Obviamente foi desagradável, mas se não faria mal ao homem, era melhor continuar. Me deram então algumas folhas de papel com algumas questões indicadas, cada uma delas com respsostas de A até D, e pediram para que eu observasse a resposta que o outro voluntário daria, através de um painel com as letras A, B,C e D. Iniciei o experimento com a seguinte questão: Qual dos elementos mais se difere em relação aos outros? A)Zebra B)Cavalo C)Mula D)Cabra. Logo de início ele marcou a letra "A". Acionei o interruptor e escutei um pequeno grito. Olhei para Milgram e ele mandou que eu continuasse. As duas próximas questões foram acertadas pelo homem, entranto as três seguintes ele errou. Os gritos aumentavam gradualmente. Comecei a ficar nervoso. Perguntei se podia abandonar, mas Milgram era firme e sucinto: "Continue." Continuei e a cada vez que ele errava, batia um grande desespero. Aos 180 Volts, o homem gritava desesperado pedindo para sair. Milgram insistia firmemente que eu continuasse para que não prejudicasse o experimento. Continuei. Acertava poucas e isso me deixava angustiado. 270,285,300 e assim por diante. Estava muito mal. Parei. Aquilo não valia $4. Estava torturando uma pessoa, um idoso. Argumentei com Milgram, mas com firmeza me garantiu que o outro estava bem. Falei que eu não era nenhum tipo sádico, e que aquilo era um absurdo. Mandou que eu não deixasse o experimento incompleto, isso prejudicaria a pesquisa e o que eu estava fazendo era pelo bem da ciência. Hesitei bastante e me sentei. olhei para as questões. Continuei. Perguntei e não obtive resposta. Stanley Milgram falou que poderia considerar isso como um erro e me mandou aplicar o choque. Contestei ao máximo, mas ativei a chave. Desde então, o senhor não respondia mais nenhuma questão. Com lágrimas nos olhos, abaixei a cabeça e fui até os 450V.
Experimento concluído às 11:30 AM, revelou Milgram. Abaixei a cabeça na mesa e chorei como uma criança, sobre as folhas espalhadas. Uma mão descansou sobre o meu ombro esquerdo. Era o senhor. Estava sorrindo. Me explicou então que ele era um ator, e que em nenhum momento ele havia levado choque. Gritava sim, mas era tudo atuação. Stanley Milgram explicou-me que a pesquisa era sobre a autoridade, e o que nós somos capazes de fazer diante dela. Falei que precisava muito ir embora. Assinei alguns papéis, peguei os quatro dólares e saí. O dinheiro terminou no chapéu do primeiro mendigo que eu vi.
A experiência mexeu comigo, provavelmente estaria apto a me tornar uma espécie de Eichmann caso vivesse na Alemanha nazista. Meses depois, recebi os resultados da pesquisa pelo correio e vi que 70% dos participantes foram até os 450 Volts. Seríamos morais diante de uma autoridade imoral?

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Cavando

Caiu no buraco. Imediatamente começou a cavar. Cavou até que a terra se juntasse ao sangue que já aparecia entre as unhas. Cavou até perder suas unhas. Não ouviu, ou fingiu não ouvir as vozes que o chamavam lá em cima, perguntando se ele queria ajuda para sair dali. Cavava sem algum objetivo, ou melhor, cavar era o seu objetivo.
Se tivesse olhado para cima, veria que o buraco era raso. Bastaria a vontade e um pequeno esforço para sair dali. Ao invés disso, cavou. E continua cavando até hoje.

domingo, 18 de outubro de 2009

O velho e o lago

Na única superfície de terra existente no extenso lago Guanatis mora um velho ermitão que isolou-se há muito tempo das interações sociais. Pensava ele na época que só assim poderia encontrar uma resposta, e no momento em que chegou na ilha, destruiu o seu barco, fazendo dele uma fogueira.
Após muitos anos, tempestades e céus azuis, não sabia mais o que eram os outros. Só sabia o que era aquele pequeno espaço, onde construiu sua pequena cabana e plantou tomates, rúculas, repolhos e cebolas. Lembranças a respeito do passado soavam demasiadamente vagas e preferia tratá-las como sonhos e pesadelos que teve numa noite qualquer.
Vinte e um anos depois de abandonar sua vida antiga, viu algo que o deixou irriquieto. Um a canoa deslizava pelo horizonte. O minúsculo remador brincava com a água. Era maravilhoso para o velho observar o movimento alternado do único remo, entrando em sincronia com o lago que já começava a refletir a invasão da noite. Aos poucos a imagem do remador foi diminuindo, até desaparecer por completo. Gritava e chorava o velho. Viu a resposta esvanecer. Mergulhou, mas tinha esquecido o que era nadar. Afogava-se. Debateu-se até se cansar e desistir de realizar esforços. Achou que seria engolido pelo lago, mas na verdade o que aconteceu foi que o lago o trouxe de volta para a ilha. Sentiu-se feliz por estar vivo ainda, mas a angústia era grande, a resposta tinha sumido.
Inúmeras tentativas de deixar a ilha foram realizadas pelo velho. Sem alguma explicação o lago impedia que o velho saísse, ou até mesmo morresse afogado, o que naquele momento seria até melhor do que a imensa melancolia de viver naquele lugar.
Assumiu que foi condenado, ou melhor, condenou-se ao adotar o isolamento na ilha. Impotente, o velho agora mira o horizonte, esperando ansiosamente uma nova aparição da canoa, na esperança de que algum dia chegasse mais perto dele, para que conseguisse finalmente vencer o lago.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Livre

A sensação mais próxima do ideal de liberdade ocorre na infância. É quando falam que não soltarão as mãos do guidão da bicicleta, mas mesmo assim soltam. Depois dos gritos e do desespero, a camabaleante bicicleta finalmente se estabiliza, e assim, o agradável vento estampa um sorriso na sua cara. É exatamente nesse momento que você se sente livre, brincando com o tempo e o espaço sem depender de ninguém.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Zoom Out

A brincadeira. As cantigas. A infância.
O balanço. O beijo. O sorriso.
A íris. O vazio. A opacidade.
O leito. Os corpos. O sexo.
O homem. A pergunta. O silêncio.
A buceta. A porra. A puta.
A camisa. As calças. As roupas.
A porta. A janela. A casa.
A solidão. A tristeza. A morte.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Equivocado

Ao meu redor havia uma grande quantidade de túneis. Escolhi aquele que era o mais simpático para mim. Caminhei um pouco e à minha frente logo apareceram uma série menor de outras entradas. Escolhi uma delas. Estava escuro. Acendi minha lanterna e iniciei a caminhada.
Caminho até agora e tenho a certeza de que não fiz a escolha certa. O ambiente do túnel não é nada agradável. Sinto o cheiro de podridão no ar e a cada passo que eu dou parece que estou sendo observado por uma centena de olhos. Como as baterias de minha lanterna aguentaram tanto tempo eu não sei, mas ainda estão acesas. Não sei o porquê de continuar seguindo em frente. Minhas pernas estão desgastadas pelo cansaço e eu já não aguento caminhar, mesmo assim continuo a fazê-lo. O pior de tudo é saber que em breve estarei diante de um paredão de cimento, sem perspectiva nenhuma de conquistá-lo. Provavelmente deve ter um pedaço de papel próximo ao paredão com alguma mensagem. Nada que seja muito relevante.
Já que estou próximo do final, resta caminhar até lá, mesmo que a passos tortos, e decidir então o que fazer. Talvez voltar e escolher um outro túnel e torcer para que seja muito mais agradável do que este.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Mea Culpa

Estranho seria olhar para a minha imagem diante do espelho e encará-la com normalidade. Meu rosto foi completamente deformado em um acidente de carro, e o reflexo apresenta aquela imagem que provoca diariamente o espanto daqueles que me olham. É extremamente difícl viver enquanto uma aberração. Desde que minha aparência foi assolada no acidente, já não consigo mais vagar pela rua e evitar que seja notado e julgado pelas faces espantadas. Uma caminhada qualquer pela rua acaba sendo um espetáculo semelhante àqueles circos de horrores, é uma combinação de curiosidade, repulsa e assombro. Mesmo as pessoas mais próximas não conseguem conversar comigo sem que eu perceba em suas expressões a sensação de asco.
Chego então à conclusão de que o preconceito é latente à natureza humana. O discurso democrático de aceitação das diferenças simplesmente não se aplica à realidade. As leis que inibem o preconceito funcionam para evitar a transformação do mundo em um circo de horrores, mas ainda assim não o aniquilam, ele está presente em todas aquelas pessoas que passaram por mim na rua, por exemplo. Falo isso a partir do meu ponto de vista, um ser humano que vive constantemente com o preconceito, inclusive quando encaro a minha deformidade no espelho, que sempre foi uma espécie de cartaz anunciando a minha bizarra imagem perante a sociedade.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Um breve diálogo com a mente

Mente presente,
tão fora de mim.
Estás tão ausente,
és sempre assim.

Viajas para longe,
dás a volta ao mundo
e num breve segundo
estás logo aqui.

Mente ausente,
te vejo tão perto
te sinto tão longe
Por que foges de mim?

Prevês o passado,
Lembra-te do futuro,
vês outros presentes,
presentes ausentes.

Ausente mente presente,
para onde irás ontem?
Para onde foste amanhã?
Tão perto e tão distante...

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Demian (I São Pedro 4,3)

Algumas coisas são muito estranhas mesmo. Hoje resolvi investigar a estante de Literatura da biblioteca de faculdade, como faço de vez em quando, e então, sem critério algum, retiro da estante o livro Demian, de Hermann Hesse e inicio a leitura.
Em determinado momento do livro me deparo com o seguinte trecho:

"(...)Glorifica-se a Deus como o Pai de toda a vida, ao mesmo tempo em que se oculta e se silencia a vida sexual, fonte e substrato da própria vida, declarando-a pecado e obra do Demônio. Não faço a menor objeção a que se adore esse Deus Jeová. Mas creio que devemos adorar e santificar o mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas essa metade oficial, artificialmente dissociada. Portanto, ao lado do culto de Deus devíamos celebrar o culto do Demônio. Isto seria o certo. Ou mesmo criar um deus que integrasse em si também o demônio e diante do qual não tivéssemos que cerrar os olhos para não ver as coisas mais naturais do mundo".

Imediatamente me recordo do post anterior, escrito ontem. Meu objetivo era trazer a reflexão justamente sobre a questão indicada por Hesse no trecho acima. Trouxe Deus e Satanás, além de deuses da mitologia grega, romana e nórdica e juntamente com Orixás da Umbanda, de modo a pensar como muitas vezes consideramos pecaminosas, erradas e até anormais, ações que fazem parte da necessidade humana, e são muitas vezes reprimidas por estruturas sociais como a tradição ou as religiões. Por isso, grande parte da minha crítica é destinada ao cristianismo que a partir da instituição do pecado torna imoral qualquer tipo de comportamento luxurioso. Certamente exigiria uma reflexão muito mais profunda sobre como essas estruturas moldam o comportamento humano, mas acho que isso foge um pouco à proposta de um blog, e portanto deixo aqui minhas questões a serem pensadas posteriormente em uma outra ocasião.

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Fora isso, fico chocado como às vezes as coisas nas quais eu tenho pensado bastante, surgem de maneira aleatória, mas ao mesmo tempo como se eu soubesse que eu as encontraria inconscientemente.
Uma vez aluguei o filme Lost Highway, do David Lynch, e enquanto colocava o DVD para assistir, estava cantando How Insensitive, do Tom Jobim. Nunca tinha assistido ao filme e era extremamente improvável que a música tocasse no filme. Logo numa das primeiras cenas, está um cara deitado numa cadeira reclinável num gramado e exatamente aquela música tocando.
Coincidência? Não me arrisco a dizer que sim.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

(I São Pedro 4,3)

E na Terra Imaculada,
próximo aos seus portões
descansava Uriel
portando a sua espada.
Eis que um dia revoltou-se
e cortou as suas asas,
caiu para o mundo terreno
e fez dele a sua casa.
Chamou Baco, Dioníso, Eros,
Exu, Loki e Satanás.
Realizaram o culto ao profano
Embriagaram-se com vinho,
sodomizaram Afrodite, Iemanjá e Freya,
espancaram Balder e Oxalá.
E então foi questionado por Satanás:
"Para o Éden ainda retornarás?",
Uriel respondeu:
"O Paraíso ainda esta lá,
calmo e ermo como sempre.
Mas agora aproveito a Gomorra
até que seja exterminada,
pois até a mais pura inocência
um dia já foi quebrada".
Deus e Zeus se entreolharam,
mas não puderam fazer nada,
lembraram-se de outros dias
de luxúria na Morada.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Carapuça

Bastava uma garota ou uma mulher possuir atributos estéticos que obedecessem a um determinado padrão estabelecido por ele e pronto. Apaixonava-se perdidamente, não importando a personalidade dela, apenas a aparência. Se não bastasse isso, achava que todas aquelas garotas que tivessem aquele padrão tinham personalidades semelhantes a sua. Pelo menos era o que pensava, mas na verdade ele próprio assumia uma personalidade que pudesse se adaptar ao modo de vida daquelas garotas.
Uma delas era de família evangélica e frequentava alguns dias da semana o culto na Igreja Metodista. Ele então fez-se evangélico. Passou a se vestir de maneira diferente, parou de beber e decorou a Bíblia.
Outra vez, apaixonou-se por uma veterinária que era boxeadora. Passou a amar cães e gatos, que não antes não eram de seu agrado, e a treinar boxe todos os dias.
Uma filósofa foi outra paixão. Leu tudo de Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Nietzsche, entre vários outros filósofos.
E ainda possuía tatuagens cobrindo os braços, resultado de uma paixão por uma tatuadora.
Assim foram tantas outras paixões, personalidades variadas para qualquer um, exceto para ele.
Parecia que ele fazia tudo isso penas para agradá-las e conquistá-las, com isso. Mas não, para ele era como sempre tivesse sido um evangélico, boxeador, que adorava tatuagens, Filosofia e animais. De maneira alguma ele tornou-se isso tudo por causa delas. Elas eram iguais a ele. Por isso é que apaixonou-se por todas elas, e não porque tinham cabelos pretos, lisos e longos, olhos azuis e pele muito branca.

Não namorou nenhuma delas. Todas elas julgaram-no falso e sem personalidade.
E os namorados de cada uma delas foram odiados por ele, pois sempre pensou ser o namorado ideal de todas elas.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A nebulosa Petrópolis

Acordo pela manhã e abro a janela do meu quarto. Estou cercado por uma redoma de névoa e o branco-acinzentado domina completamente a paisagem, que de tempos em tempos ganha recortes circulares e amarelados provocados pelos faróis de veículos, de passagem pelas ruas do Valparaíso.O ruço petropolitano, como é chamado pelos próprios habitantes, muitas vezes é associado ao famoso Fog londrino pelos turistas ou moradores mais recentes, tornando a cidade mais charmosa e aconchegante, ainda mais quando é combinada com o frio e as encantadoras ruas do centro histórico, pelo menos é o que dizem.
Resolvo sair do apartamento e dar uma volta a pé, vestindo uma bota com meia grossa, uma calça jeans, uma blusa de manga comprida e mais dois casacos de moletom, sendo um deles com capuz, elemento essencial para se proteger da chuva fina que acompanha os petropolitanos a maior parte do ano, sem nenhum exagero.
Ao iniciar o passeio, percebo que o meu campo de visão está limitado em um raio de uns cinco metros, aproximadamente. É como eu estivesse caminhando com uma coluna invisível me protegendo para não ser engolido pelo branco. Pessoas e os faróis de neblina dos carros passam por mim e perdem-se no ambiente em questão de segundos. Uma constante sensação de claustrofobia me incomoda, parece que em breve serei espremido por toda aquela massa de ar e umidade que me acossa desde que saí de casa. As calçadas acompanham as inclinadas ruas construídas sobre os morros petropolitanos, mas enquanto caminho mais parecem que nascem e morrem no ruço, assim como casas, árvores ou qualquer coisa que entre no meu raio de visão.
Chego na Rua do Imperador, principal rua de Petrópolis, cortada pelo rio Piabanha e margeada por sapatarias, bancos e farmácias, em grande maioria. Conforme ando por ali, percebo os petropolitanos andando em minha volta, provavelmente resolvendo algum problema ou fazendo alguma compra na chamada "Vinida", no bom vocabulário petropolitano. Todos usando casacos, gorros, capuzes e até luvas. Mas o que mais me impressiona não são as vestimentas, mas sim as expressões presentes nos rostos e o modo de caminhar. Os olhares são bastante diferentes daqueles que já vi em dias chuvosos na Avenida Rio Branco ou na Avenida Paulista. Aqueles estavam cobertos de preocupações momentâneas, certamente ganhariam outros tons após o trabalho. As preocupações também estão presentes nos olhares dos petropolitanos que vagueiam pela Rua do Imperador, entretanto algo mais está impregnando a retina, a íris e as pálpebras. Parece um certo cansaço de tanto carregar um peso enorme, talvez o peso daquela neblina. Assim como os olhares pesados , as caras eram discretamente fechadas, com narizes levemente avermelhados por causa da umidade, e bocas estagnadas, impedindo os dentes de surgirem em meio aos lábios, provocando-me uma sensação de cansaço ainda maior.
Voltei para o meu apartamento e refleti. Percebi que em minha caminhada passei por umas duas centenas de pessoas, algumas eram até conhecidos meus que chegavam a abrir um sorriso momentâneo só para realizar o cumprimento, mas após passarem por mim, retomavam a expressão padrão. Concluí, então, que as pessoas pareciam produzidas pela própria névoa. Demonstravam ser produtos de uma linha de produção, com algumas diferenças como a cor ou o tipo de vestimenta, mas no fundo tinham a mesma cara, o mesmo jeito de caminhar, demonstrando em ambas um enorme esforço, algo como a obrigação de carregar um grande peso. Decidi me olhar no espelho. Lá estava aquela mesma expressão em meu rosto. Provavelmente caminhei da mesma maneira. Sem mais devaneios sobre tudo aquilo, assumi que também era mais um dos elementos produzidos pela neblina, e aquele peso que parecia estar presente em todas as outras pessoas, também estava comigo. Não sei o quanto pesava para os outros petropolitanos, mas a mim o peso soava como uma infelicidade, tinha a massa de um desconforto e a gravidade de uma tristeza.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

A rotina e os riscos

Lendo "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, um trecho acabou me chamando a atenção e me provocou inúmeras reflexões. O trecho na verdade é um capítulo que discorre um pouco sobre a idéia corrente de efemeridade do tempo conforme realizamos atividades que nos dão prazer. Mann foge exatamente dessa idéia e nos diz que analisando a nossa vida como um todo veremos que isso não é verdade.
Aquelas tarefas chamadas de rotineiras, e que geralmente nos trazem a idéia de que o tempo está passando vagarosamente, na verdade são muito mais efêmeras do que aqueles pequenos períodos de tempo em que visamos a interrupção de uma rotina. Quanto mais nos afastamos da rotina, maior é a durabilidade do tempo. Um exemplo claro disso é o período em que passamos na escola. Ao analisarmos todo o período em que vivemos ali, veremos que são irrelevantes os horários das aulas durante a semana ou a duração de cada uma delas. Refletiremos mais sobre todos aqueles eventos que "quebraram" com aquela rotina, seja algum evento estranho àquele modo de vida, como algum comportamento desviante de algum aluno, ou mesmo um conhecimento transmitido por algum professor e que adquirimos por ter achado o assunto interessante.
É claro, a memória exerce um papel fundamental nesse processo de reconstrução do tempo vivido, mas de certa forma esse processo é inevitável. Se recorremos ao passado, certamente estamos realizando um processo de reconstrução de algum evento vivido. Geralmente são esses eventos que fogem da rotina, que estão mais sujeitos à atividade da memória, e portanto acabam se tornando mais duradouros à longo prazo, do que qualquer evento rotineiro, que em princípio parece tão longo.
A rotina é inevitável, e eu diria até necessária, entretanto muitas vezes ela é capaz de nos entorpecer e nos tornar conservadores em relação às nossas escolhas. É muito confortável não assumir os riscos da mudança. As atividades rotineiras muitas vezes nos tornam alheios, geram passividade e omissão e eliminam os riscos , e estes são fundamentais para que o indivíduo viva experiências variadas e consequentemente torne o tempo mais duradouro.

O personagem fictício Ivan Ilítch, de Lev Tolstói, nos deixa claro isso. Apenas quando está moribundo, prestes a morrer, olha para trás e percebe que a sua vida, o típico ideal burguês, de formar-se, arrumar um emprego, crescer no emprego, ter filhos e "estabilizar-se" na vida, muitas vezes assume um caráter vazio. Morre um sujeito infeliz, arrependido de não ter se arriscado mais em sua vida.

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Pelo menos é essa a minha visão, e não quero desmerecer todos aqueles que convivem muito bem com a rotina.

domingo, 19 de julho de 2009

Voilà

I

1) Imagine uma partícula disposta de forma aleatória no tempo e no espaço;

2) Essa partícula possui ligações (visíveis ou invísiveis) com diversas outras partículas espalhadas pelas dimensões do tempo e do espaço;

3) As outras partículas podem estar dispostas em conjuntos ou isoladas, sendo que também possuem ligações com outras partículas isoladas ou com um conjunto de partículas;

4) Todas as outras partículas (agrupadas em conjunto ou não) assumem variadas formas, cores e tamanhos, de acordo com a percepção daquela primeira partícula em relação às outras;

5) A forma, o tamanho e a cor daquela partícula também depende de como ocorrem as ligações das outras partículas ou conjunto de partículas, com a própria partícula, tornando assim uma relação recíproca entre a primeira partícula e todas aquelas outras.

II

1) Imagine você;

2) Imagine todas as pessoas com quem você travou contato em variados períodos e em variados lugares;

3) Essas pessoas podem ser pessoas isoladas ou um grupo de pessoas, uma sociedade que possuem ligações diretas ou indiretas com você e com outras pessoas e sociedades;

4)Todas essas pessoas ou sociedades são percebidas por você a partir de um estado psicológico que você possui em um determinado lugar em um determinado momento;

5) Esse seu estado psicológico é influenciado por todas aquelas pessoas e sociedades, o que torna uma relação circular entre o seu estado psicológico e aquelas pessoas e sociedades com que você possui algum tipo de relação direta ou indireta.

sábado, 4 de julho de 2009

Página 263

(...)
"Você se lembra de personagens e situações de páginas passadas, e há aquela pausa para um momento nostálgico. Alguns desses personagens aparecem logo no início, continuam aparecendo e, certamente aparecerão nas páginas seguintes . Outros foram essenciais em alguns momentos do livro, mas agora só aparecem na memória do leitor, já que acabaram perdendo-se nas páginas anteriores.
Então, vira a página, esperando que novas situações e personagens apareçam, e que sejam tão fascinantes e interessantes como tudo aquilo que foi lido".

terça-feira, 30 de junho de 2009

O comedor de papelão

Pôs um generoso pedaço de papelão no prato. Cortou uma de suas arestas, impulsonando-a até a boca. Os caninos rasgaram e os molares trituraram. A língua indicava um sabor estranho, sem-graça e difícil de se engolir. Ainda assim consumiu o pedaço de papelão até o fim. Na sala, caixas e caixas de papelão amontoadas esperando a ingestão. Hora ou outra encontrava um grampo firmemente vinculado a um dos pedaços. Mordia-o e sentia um pequeno incômodo nos dentes. Tinha mais sabor do que todas aquelas caixas, entretanto preferia cuspi-los.
Terminada a refeição, resolveu tirar um cochilo. Jogou um lençol sobre algumas das caixas amassadas e pôs-se a dormir, e quem sabe a sonhar. Não sonhou. Acordou e percebeu que tinha dormido umas cinco horas. Reflexões a respeito do tempo em que passa dormindo veio-lhe à mente. Dormiu cinco horas mas parecia que havia passado uns 5 minutos apenas. Mas isso realmente não importava. Na verdade, o mais importante eram aqueles pedaços de papelão aguardando o ácido gástrico. Resolveu continuar a tarefa anterior ao sono. E assim, uma a uma, as caixas desapareciam, e por mais desagradável que fosse aquela refeição,nunca estava satisfeito.
Por um instante parou e refletiu a respeito. Um minuto de hesitação. Rasgou. Mastigou. Engoliu. Desagradável. Era a vida. Rasgar, mastigar e engolir.

sábado, 27 de junho de 2009

A(s)Simetria

Por que sambar?
Com a batida do pandeiro.
Naquelas pernas trocadas.
Estão minhas idéias estagnadas.
No conforto de um travesseiro.
Com as penas amassadas.
Por que dormir?

sexta-feira, 26 de junho de 2009

As coisas e a Coisa.

As vassouras que outrora limpavam a casa, agora amontoavam-se no porão, com suas piaçavas tortas. As vassouras já não importavam, apenas os seus cabos.
A pilha de incontáveis jornais. As principais notícias, as futilidades e os classificados. Não serviriam mais para informar.
Naquele saco de roupas velhas, destinadas provavelmente aos pobres de algum abrigo, encontraram uma encardida camisa xadrez. O estado da camisa não importava muito.
No fundo do armário, em meio aos últimos cabides, estava suspenso um velho jeans desbotado, com as barras mordidas de tanto encontrar a terra. Foi lavado.
A amarelada camiseta branca, com dois recortes debaixo das mangas e com a aparência amassada, estava imersa na gaveta dos pijamas. Lá não era mais o seu espaço.
Ainda no porão, escondido no meio de entulhos, um remendado saco que já estivera preenchido com esterco. Não teria mais essa utilidade.
Um bom pedaço de couro também encontraram ali. Ganhou costuras e uma forma nova.

Das vassouras, o esqueleto.
Dos jornais, os órgãos.
Da camisa, da camiseta e do jeans, a pele.
Do saco velho, a cabeça.
Do pedaço de couro, o chapéu.
Das coisas, uma coisa.
A face? Não havia. Negaram-lhe uma expressão.

Ganhou um novo posto. Vigilante da plantação.
Quanto tempo duraria?
Espantaria os pássaros?
Quem o criou?
Na verdade, não importava muito. No centro daquela paisagem uniforme passou a estar, e principalmente, a ser.
E assim o espantalho nasceu de restos, viveu estagnado e preso àquela condição. Um dia caiu. Perdeu-se na plantação, foi comido pelo tempo.

Mas existiu. E ele soube.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Lembrança de olaia

Percorrendo o sertão pernambucano entre as cidades de Ibimirim e Sertânia, avistei uma rústica construção através do imundo vidro do meu Opala 95. Observando aquela ilha cercada por poeira e variadas formas de cactos, percebi não haver nenhuma trilha que pudesse me levar até o local.
Tomado pela curiosidade, encostei o carro entre dois chamativos cactos, distantes uns cinco metros fora da estrada de terra, peguei minha mochila e então comecei a caminhar em direção à construção.
Após uma caminhada de uns quinhentos metros com o sol a pino, os poros do meu corpo vomitavam toda a água que me restava. Ainda assim apressei os meus passos e segui cambaleando até me deparar com uma pequena igreja. Não havia nada além de uma torre de uns quatro metros, a tinta branca cobrindo-a e uma rudimentar porta de madeira.
Ajoelhado sobre o chão arenoso chamei por alguém. Só quem me atendeu foi o sol, gritando um calor infernal. Resolvi então empurrar a porta da igreja e percebi que mesmo muito fraco ela havia entendido o esforço de meus braços. Conforme a porta recuava, a luz invadia o ambiente interno, inundando-o parcialmente com um brilho seco. A nave não possuía nenhum banco e as paredes não guardavam vitrais ou pinturas barrocas. Ao invés disso, o branco predominava. Entretanto, uma luz amarela cegava os meus olhos, impedindo-os de enxergar a brilhante coisa que estava no lugar do altar. Me aproximei.
Do chão, erguia-se o tronco de uma olaia de ouro e do tronco estava um único galho grosso. Uma corda amarrada no galho segurava um grande laço. Nesse instante lembrei de um trecho de uma antiga cantiga canção bíblica entoada por minha avó:

Entregou-se à olaia
e justiça ela fez
Vingou o Salvador
e aquele que o traiu
calou-se de uma vez

Era a igreja de Judas Isacriotes, o delator de Cristo. Mas quem teria construído um recanto cristão para o grande traidor dos cristãos?
Uma outra lembrança me veio à cabeça. Três versões de Judas, o conto de Jorge Luís Borges. No conto, um escritor define a partir de estudos, três diferentes perspectivas a respeito de Judas. A última delas é a que me chamou mais atenção. Judas não era o culpado de trair Jesus, o pecado aqui estava além de suas próprias forças. Jesus tinha que morrer para salvar a humanidade e alguém teria que o trair para que isso ocorresse. Judas foi o responsável. Ele apontou Jesus para que ele pudesse salvar a humanidade. E ali, naquele inóspito pedaço de terra, estava um monumento a Judas, o apóstolo que assumiu o trabalho de pecar, de trair o seu mestre para que a humanidade pudesse ser salva.
Logo compreendi que nenhum cristão seria capaz de construir a igreja para um traidor. Ninguém compreenderia. Não havia padre, nem o corpo de Cristo. Havia a forca amarrada em uma olaia de ouro e nada mais. Realmente não tive mais curiosidade em descobrir quem havia levantado os muros daquele templo. Resolvi abandonar o lugar e deixa-lo como eu o encontrei. Voltei para o meu Opala estacionado e retornei para a estrada. A igreja ficou lá. Certamente algum outro viajante passaria por ali. A passagem certamente seria vaga, afinal de contas o sertão e a certeza são terrenos difíceis de serem vencidos e aquela igreja está destinada ao esquecimento daqueles que um dia a encontraram.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Sobre merda e papel higiênico.

Chego até a rodoviária Novo Rio em uma manhã de sábado. Dirijo-me até a fila esperando a minha vez para comprar a passagem Rio X Petrópolis, horário de saída 11:00. Após umas três pessoas, sigo até o guichê e entrego uma nota de 20 reais para o antendente. Em troca, me entrega a passagem e cinco reais de troco. Amasso a passagem e o troco e coloco no bolso da calça. Avisto duas cadeiras livres, em uma fileira com três, e então sento na do meio. No meu lado esquerdo, uma senhora com um lenço na cabeça e a bagagem no colo. No lado direito, uma cadeira livre com algumas marcas de chave.
Como faltavam quarenta minutos para a saída do ônibus, decido pegar um livro e ler. Umas três páginas depois, percebo um jovem casal se aproximando e discutindo:
- Não! Sai daqui. Num quero nada contigo - diz a moça.
- Fabiana, por favor!- retruca o rapaz, segurando o braço dela.
- Me larga!
- Calma...
E a moça senta-se ao meu lado, cruzando as pernas e esboçando um bico de insatisfação. O rapaz se aproxima e continua a discutir. Esforço-me ao máximo para retornar à leitura, mas a discussão parece ficar cada vez mais séria e as vozes elevam-se. Não sei o que fazer. Se fechar o livro, podem pensar que estou atento à conversa. Se me levantar podem me envolver na discussão com comentários do tipo: "Tá vendo! Até o garoto foi embora!". E então posso até ser motivo para mais discussão.
Como ainda faltavam vinte minutos, decidi permanecer na mesma. Finjo continuar lendo. A discussão continua até que a moça esbraveja, soltando a seguinte acusação:
- Você é muito merda! Você é tão merda que não tem dinheiro nem pra pagar a porra do papel higiênico!
Diante da seguinte afirmação, um leve sorriso aparece na minha cara e solto um barulho estranho."Pfff", ou algo do tipo. Mas continuo com a minha interpretação de leitura. Até que escuto:
- ...tá rindo de mim? Tá rindo de mim, seu merda? Fica prestando atenção à conversa dos outros!
Levanto o meu olhar e percebo que está falando comigo. Respondo de maneira surpresa:
- Não não... Só estou lendo aqui.
- Isso. Continua a ler o livro e não se meta na conversa dos outros.

Termino (ou finjo terminar) o capítulo e levanto. Saio rindo da situação inusitada e cinco reais no bolso, que poderiam muito bem pagar o papel higiênico para o merda.