terça-feira, 25 de agosto de 2009

Demian (I São Pedro 4,3)

Algumas coisas são muito estranhas mesmo. Hoje resolvi investigar a estante de Literatura da biblioteca de faculdade, como faço de vez em quando, e então, sem critério algum, retiro da estante o livro Demian, de Hermann Hesse e inicio a leitura.
Em determinado momento do livro me deparo com o seguinte trecho:

"(...)Glorifica-se a Deus como o Pai de toda a vida, ao mesmo tempo em que se oculta e se silencia a vida sexual, fonte e substrato da própria vida, declarando-a pecado e obra do Demônio. Não faço a menor objeção a que se adore esse Deus Jeová. Mas creio que devemos adorar e santificar o mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas essa metade oficial, artificialmente dissociada. Portanto, ao lado do culto de Deus devíamos celebrar o culto do Demônio. Isto seria o certo. Ou mesmo criar um deus que integrasse em si também o demônio e diante do qual não tivéssemos que cerrar os olhos para não ver as coisas mais naturais do mundo".

Imediatamente me recordo do post anterior, escrito ontem. Meu objetivo era trazer a reflexão justamente sobre a questão indicada por Hesse no trecho acima. Trouxe Deus e Satanás, além de deuses da mitologia grega, romana e nórdica e juntamente com Orixás da Umbanda, de modo a pensar como muitas vezes consideramos pecaminosas, erradas e até anormais, ações que fazem parte da necessidade humana, e são muitas vezes reprimidas por estruturas sociais como a tradição ou as religiões. Por isso, grande parte da minha crítica é destinada ao cristianismo que a partir da instituição do pecado torna imoral qualquer tipo de comportamento luxurioso. Certamente exigiria uma reflexão muito mais profunda sobre como essas estruturas moldam o comportamento humano, mas acho que isso foge um pouco à proposta de um blog, e portanto deixo aqui minhas questões a serem pensadas posteriormente em uma outra ocasião.

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Fora isso, fico chocado como às vezes as coisas nas quais eu tenho pensado bastante, surgem de maneira aleatória, mas ao mesmo tempo como se eu soubesse que eu as encontraria inconscientemente.
Uma vez aluguei o filme Lost Highway, do David Lynch, e enquanto colocava o DVD para assistir, estava cantando How Insensitive, do Tom Jobim. Nunca tinha assistido ao filme e era extremamente improvável que a música tocasse no filme. Logo numa das primeiras cenas, está um cara deitado numa cadeira reclinável num gramado e exatamente aquela música tocando.
Coincidência? Não me arrisco a dizer que sim.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

(I São Pedro 4,3)

E na Terra Imaculada,
próximo aos seus portões
descansava Uriel
portando a sua espada.
Eis que um dia revoltou-se
e cortou as suas asas,
caiu para o mundo terreno
e fez dele a sua casa.
Chamou Baco, Dioníso, Eros,
Exu, Loki e Satanás.
Realizaram o culto ao profano
Embriagaram-se com vinho,
sodomizaram Afrodite, Iemanjá e Freya,
espancaram Balder e Oxalá.
E então foi questionado por Satanás:
"Para o Éden ainda retornarás?",
Uriel respondeu:
"O Paraíso ainda esta lá,
calmo e ermo como sempre.
Mas agora aproveito a Gomorra
até que seja exterminada,
pois até a mais pura inocência
um dia já foi quebrada".
Deus e Zeus se entreolharam,
mas não puderam fazer nada,
lembraram-se de outros dias
de luxúria na Morada.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Carapuça

Bastava uma garota ou uma mulher possuir atributos estéticos que obedecessem a um determinado padrão estabelecido por ele e pronto. Apaixonava-se perdidamente, não importando a personalidade dela, apenas a aparência. Se não bastasse isso, achava que todas aquelas garotas que tivessem aquele padrão tinham personalidades semelhantes a sua. Pelo menos era o que pensava, mas na verdade ele próprio assumia uma personalidade que pudesse se adaptar ao modo de vida daquelas garotas.
Uma delas era de família evangélica e frequentava alguns dias da semana o culto na Igreja Metodista. Ele então fez-se evangélico. Passou a se vestir de maneira diferente, parou de beber e decorou a Bíblia.
Outra vez, apaixonou-se por uma veterinária que era boxeadora. Passou a amar cães e gatos, que não antes não eram de seu agrado, e a treinar boxe todos os dias.
Uma filósofa foi outra paixão. Leu tudo de Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Nietzsche, entre vários outros filósofos.
E ainda possuía tatuagens cobrindo os braços, resultado de uma paixão por uma tatuadora.
Assim foram tantas outras paixões, personalidades variadas para qualquer um, exceto para ele.
Parecia que ele fazia tudo isso penas para agradá-las e conquistá-las, com isso. Mas não, para ele era como sempre tivesse sido um evangélico, boxeador, que adorava tatuagens, Filosofia e animais. De maneira alguma ele tornou-se isso tudo por causa delas. Elas eram iguais a ele. Por isso é que apaixonou-se por todas elas, e não porque tinham cabelos pretos, lisos e longos, olhos azuis e pele muito branca.

Não namorou nenhuma delas. Todas elas julgaram-no falso e sem personalidade.
E os namorados de cada uma delas foram odiados por ele, pois sempre pensou ser o namorado ideal de todas elas.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A nebulosa Petrópolis

Acordo pela manhã e abro a janela do meu quarto. Estou cercado por uma redoma de névoa e o branco-acinzentado domina completamente a paisagem, que de tempos em tempos ganha recortes circulares e amarelados provocados pelos faróis de veículos, de passagem pelas ruas do Valparaíso.O ruço petropolitano, como é chamado pelos próprios habitantes, muitas vezes é associado ao famoso Fog londrino pelos turistas ou moradores mais recentes, tornando a cidade mais charmosa e aconchegante, ainda mais quando é combinada com o frio e as encantadoras ruas do centro histórico, pelo menos é o que dizem.
Resolvo sair do apartamento e dar uma volta a pé, vestindo uma bota com meia grossa, uma calça jeans, uma blusa de manga comprida e mais dois casacos de moletom, sendo um deles com capuz, elemento essencial para se proteger da chuva fina que acompanha os petropolitanos a maior parte do ano, sem nenhum exagero.
Ao iniciar o passeio, percebo que o meu campo de visão está limitado em um raio de uns cinco metros, aproximadamente. É como eu estivesse caminhando com uma coluna invisível me protegendo para não ser engolido pelo branco. Pessoas e os faróis de neblina dos carros passam por mim e perdem-se no ambiente em questão de segundos. Uma constante sensação de claustrofobia me incomoda, parece que em breve serei espremido por toda aquela massa de ar e umidade que me acossa desde que saí de casa. As calçadas acompanham as inclinadas ruas construídas sobre os morros petropolitanos, mas enquanto caminho mais parecem que nascem e morrem no ruço, assim como casas, árvores ou qualquer coisa que entre no meu raio de visão.
Chego na Rua do Imperador, principal rua de Petrópolis, cortada pelo rio Piabanha e margeada por sapatarias, bancos e farmácias, em grande maioria. Conforme ando por ali, percebo os petropolitanos andando em minha volta, provavelmente resolvendo algum problema ou fazendo alguma compra na chamada "Vinida", no bom vocabulário petropolitano. Todos usando casacos, gorros, capuzes e até luvas. Mas o que mais me impressiona não são as vestimentas, mas sim as expressões presentes nos rostos e o modo de caminhar. Os olhares são bastante diferentes daqueles que já vi em dias chuvosos na Avenida Rio Branco ou na Avenida Paulista. Aqueles estavam cobertos de preocupações momentâneas, certamente ganhariam outros tons após o trabalho. As preocupações também estão presentes nos olhares dos petropolitanos que vagueiam pela Rua do Imperador, entretanto algo mais está impregnando a retina, a íris e as pálpebras. Parece um certo cansaço de tanto carregar um peso enorme, talvez o peso daquela neblina. Assim como os olhares pesados , as caras eram discretamente fechadas, com narizes levemente avermelhados por causa da umidade, e bocas estagnadas, impedindo os dentes de surgirem em meio aos lábios, provocando-me uma sensação de cansaço ainda maior.
Voltei para o meu apartamento e refleti. Percebi que em minha caminhada passei por umas duas centenas de pessoas, algumas eram até conhecidos meus que chegavam a abrir um sorriso momentâneo só para realizar o cumprimento, mas após passarem por mim, retomavam a expressão padrão. Concluí, então, que as pessoas pareciam produzidas pela própria névoa. Demonstravam ser produtos de uma linha de produção, com algumas diferenças como a cor ou o tipo de vestimenta, mas no fundo tinham a mesma cara, o mesmo jeito de caminhar, demonstrando em ambas um enorme esforço, algo como a obrigação de carregar um grande peso. Decidi me olhar no espelho. Lá estava aquela mesma expressão em meu rosto. Provavelmente caminhei da mesma maneira. Sem mais devaneios sobre tudo aquilo, assumi que também era mais um dos elementos produzidos pela neblina, e aquele peso que parecia estar presente em todas as outras pessoas, também estava comigo. Não sei o quanto pesava para os outros petropolitanos, mas a mim o peso soava como uma infelicidade, tinha a massa de um desconforto e a gravidade de uma tristeza.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

A rotina e os riscos

Lendo "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, um trecho acabou me chamando a atenção e me provocou inúmeras reflexões. O trecho na verdade é um capítulo que discorre um pouco sobre a idéia corrente de efemeridade do tempo conforme realizamos atividades que nos dão prazer. Mann foge exatamente dessa idéia e nos diz que analisando a nossa vida como um todo veremos que isso não é verdade.
Aquelas tarefas chamadas de rotineiras, e que geralmente nos trazem a idéia de que o tempo está passando vagarosamente, na verdade são muito mais efêmeras do que aqueles pequenos períodos de tempo em que visamos a interrupção de uma rotina. Quanto mais nos afastamos da rotina, maior é a durabilidade do tempo. Um exemplo claro disso é o período em que passamos na escola. Ao analisarmos todo o período em que vivemos ali, veremos que são irrelevantes os horários das aulas durante a semana ou a duração de cada uma delas. Refletiremos mais sobre todos aqueles eventos que "quebraram" com aquela rotina, seja algum evento estranho àquele modo de vida, como algum comportamento desviante de algum aluno, ou mesmo um conhecimento transmitido por algum professor e que adquirimos por ter achado o assunto interessante.
É claro, a memória exerce um papel fundamental nesse processo de reconstrução do tempo vivido, mas de certa forma esse processo é inevitável. Se recorremos ao passado, certamente estamos realizando um processo de reconstrução de algum evento vivido. Geralmente são esses eventos que fogem da rotina, que estão mais sujeitos à atividade da memória, e portanto acabam se tornando mais duradouros à longo prazo, do que qualquer evento rotineiro, que em princípio parece tão longo.
A rotina é inevitável, e eu diria até necessária, entretanto muitas vezes ela é capaz de nos entorpecer e nos tornar conservadores em relação às nossas escolhas. É muito confortável não assumir os riscos da mudança. As atividades rotineiras muitas vezes nos tornam alheios, geram passividade e omissão e eliminam os riscos , e estes são fundamentais para que o indivíduo viva experiências variadas e consequentemente torne o tempo mais duradouro.

O personagem fictício Ivan Ilítch, de Lev Tolstói, nos deixa claro isso. Apenas quando está moribundo, prestes a morrer, olha para trás e percebe que a sua vida, o típico ideal burguês, de formar-se, arrumar um emprego, crescer no emprego, ter filhos e "estabilizar-se" na vida, muitas vezes assume um caráter vazio. Morre um sujeito infeliz, arrependido de não ter se arriscado mais em sua vida.

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Pelo menos é essa a minha visão, e não quero desmerecer todos aqueles que convivem muito bem com a rotina.