segunda-feira, 28 de março de 2011

A segunda resposta de Pai Afonso

Bateram novamente na porta da cabana do Pai Afonso. Um homem de meia idade em crise com a vida de desquitado e desempregado.

Pai Afonso abriu a porta e viu o homem esfarrapado e com uma cara de tristeza e disse:

-Caralho, mais um filho da puta em crise com o mundo. Vai ler Paulo Coelho, seu imbecil!

Pai Afonso já estava fechando a porta, quando o homem disse:

-Espere, eu tenho uma cachaça para você.

Rapidamente Pai Afonso pegou a garrafa das mãos trêmulas do homem e, olhando desconfiado, entrou e bateu a porta.

-Ei, Pai Afonso! Preciso de uma resposta!

A porta da cabana novamente se abriu, e o velho abriu a porta deu um pedaço de uma folha de caderno cortada para o homem e em seguida bateu a porta.

No papel estava a seguinte anotação:

demaisvalorasaspasvirgulasacentospontosaparagrafoshifensespacoscedilhaseletrasmaiusculasaoinvesdeficarsepreocupandocompalavrassuperficiaisquepossuemapretensaodedizercomoviverumavida

Com dificuldade em decifrar o manuscrito, o homem gritou:

-O que você quis dizer com isso, ó Pai Afonso.

-Não sabe ler? - o velho gritou de dentro.

-Sei, mas não estou entendendo o que está escrito – respondeu aos berros o outro.

-Então vai se foder. Já fiz a minha parte - concluiu Pai Afonso.

Então, o homem fez um esforço para ler o que estava escrito ali. Mas não demorou muito. Com o mínimo esforço compreendeu e decifrou o texto.

Lendo o que estava escrito começou a gargalhar sem parar. Chorava de tanto rir.

Após o pequeno surto de riso e já com um sorriso de satisfação, amassou o papel e colocou-o no bolso. Gritou bem alto:

-Seu velho desgraçado, você merece essa cachaça!

De cabeça erguida, deu meia-volta e foi embora.

terça-feira, 22 de março de 2011

Fato ou ficção?

Naquela noite, estava sentado com mais dois amigos na mesa de um boteco de esquina. Os assuntos dominantes eram cenas do cotidiano. Lembrei-me de um dia ter presenciado uma situação cômica em que uma senhorita esbelta quebrou o salto na calçada e levou um tombo. Dois segundos depois, haviam cinco homens de todas as idades ajudando a moça a se levantar. Um de meus amigos complementou a história afirmando que certamente eu era um deles. Estava certo.

Gargalhamos, até notarmos a presença de um homem soturno, com cabelos longos e grisalhos, a barba rala cobrindo as suas rugas e o sobretudo negro e desbotado cobrindo o seu corpo. Estava fumando o último trago de um cigarro. Expirou com melancolia a derradeira fumaça e nos dirigiu a palavra:

-Sabe, garotos, não pude deixar de ouvir a anedota que um de vocês narrou.

Retruquei dizendo:

-Não era uma anedota. Foi um fato. Aconteceu exatamente como eu contei.

O homem, então, lançou-me um olhar surpreso e um sorriso sarcástico e falou:

-Desculpe, garoto. De maneira alguma quis questionar a verossimilhança da sua história. Eu apenas lembrei de um acontecimento tão parecido quanto o que acaba de contar. Se não se sentirem incomodados , eu poderia narrar o ocorrido conforme minha memória me permitiu relembrar?


Eu e meus amigos nos entreolhamos desconfiados e constrangidos, mas acenamos afirmativamente com as nossas cabeças.

-Pois então, era uma manhã de domingo, um dia bucólico no parque da cidade. Estava lendo o meu jornal, sentado naquele banco cravado de frente para a bela infância que brincava e corria despreocupadamente pelo gramado sob os olhares dos pais. Do meu lado direito do banco, um garoto da idade de vocês lia um livro e a música traspassava os fones enterrados em seu ouvido e os gritos de uma sinfonia jovem podiam ser ouvidos. Do outro lado, o pai cuidadoso gritava para o filho: “Matheus, cuidado para não cair”. Perto do banco, dois jovens desportistas chutavam uma bola de futebol um contra o outro, sem que houvesse nenhum tipo de disputa em jogo...


A clareza de detalhes e a perfeita oratória no relato do estranho homem incentivava a criação de uma imagem mental perfeita. Meus amigos, que de início pareciam entediados, agora encaravam o homem com uma grande curiosidade, mesmo sabendo que o final provavelmente seria bem parecido com o da minha história.

Continuava o estranho a narrar:

-...de repente, uma das babás das crianças, uma jovem e voluptuosa morena, vestida impecavelmente e impropriamente para uma situação trivial como levar os filhos do patrão para brincar no parque, atravessou paralelamente o banco em que as coisas relatadas estavam acontecendo. O mundo parou. A lembrança dos tempos mais jovens me ocorreu, quando pela primeira vez via Teresa, minha falecida esposa, vagando no baile de carnaval e com a mais bela fantasia atravessou o salão desfilando e sorrindo atrás de sua máscara. Teresa, ah, Teresa! E a babá morena me aparecia cruzando o andar em um salto alto na calçada do parque. Nós, aqueles homens da tarde de domingo focávamos os olhares para a babá que florescia aquele parque com sua presença marcante. Até que a luz que a perseguia transformou-se trevas! Oh! Maldito salto! Tu que deverias suportar a perfeição do sexo feminino! Tu! Separaste de teu sapato em tentativa de perder-te pelos caminhos do mundo! E ali a tragédia anunciada!

O pai que preocupava-se com o filho já não mais gritava. Boquiaberto, levantou-se e correu desesperadamente.

O garoto do livro, atirou-o contra o céu, talvez implorando para os deuses para que a beleza daquela ninfa fosse poupada.

Os jovens do futebol deixaram a bola correr pelo gramado, enquanto corriam em direção à mulher como se fossem proteger a meta do seu time de levar um gol.

E este que aqui está narrando, bom este correu com o jornal e tudo. Naquela hora nenhuma informação me importava. Eu queria ser herói. Levantei-me e corri gastando o meu fôlego e com a força limitada dos meus músculos.

Formávamos a infantaria do exército masculino, guerreando contra o infeliz acaso de um salto quebrado. Lutando contra o tempo para evitar o choque da escultura contra o chão duro. Mas nosso esforço foi inútil, pelo menos inicialmente. A babá chocou-se contra o chão. A tristeza ocupou o meu coração. Teresa, ah, Teresa! Estava a babá caída enquanto nós, homens, vencíamos os obstáculos e a distância de poucos metros que separavam o corpo caído dos nossos esforços viris. Mas então aconteceu. A salvação. O resgate. Erguemos aquele corpo em um pequeno instante. O dia voltou a brilhar. A vida era mais feliz. A mulher, confusa, mas satisfeita por estar de pé. Agradeceu, sorriu e seguiu o seu caminho. Éramos heróis. Heróis de domingo. Nenhuma palavra mencionamos. Trocamos olhares de realização enquanto nossa atenção confluía para a babá, já de volta para o mundo a que pertencia. Domingo, santo domingo!


O bar estava em silêncio. Havia se transformado em um teatro de arena, com o homem no centro e a platéia acompanhando o desfecho daquela saga. Os aplausos surgiram tímidos, mas desabrocharam, se transformando em gritos e exaltações. O homem sinalizou com um leve sorriso em sinal de agradecimento e abandonou o bar sem olhar para trás.

Não sabia o nome dele. Sabia que era o contador de histórias mais impressionante que eu nunca conheci. Com ele, naqueles quinze minutos de descrições balzaquianas, tragédias gregas, fluxos joyceanos e interpretações stanislavskianas, percebi que a memória nos permite mentir, inventar e até criar. A memória não é linear, nem sucinta, nem prolixa, ela é aquela reconstrução mental de alguma situação ocorrida. Eu, o garoto sentado à direita do estranho homem, relatei a mesma história, que de anedótica transformou-se em um épico, em um monólogo fantástico do personagem que a minha memória me permitiu transformar em palavras escritas.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Solilóquio do escafandro cúbico diante do espelho

Ato I

Sua cabeça numa caixa. Você e o espelho, este suavemente apertado contra seu nariz. Seu reflexo te encara. Os movimentos inexistem. Somente as pálpebras possuem tal privilégio. São as cortinas que ocasionalmente interrompem o espetáculo macabro. O confronto com a própria imagem enquadrada. A guerra contra a existência forçosa. Os olhos miram o desespero com uma ironia refletida ad aeternum. A face é o invólucro da limitação muscular.

-Ah, vida! Que peça me foi pregada! Eu diante de um espelho até a morte! Ao inferno Descartes e o “Cogito ergum sum”!

-Melhor seria não pensar ou, melhor ainda, não existir. Ao menos posso dialogar com o reflexo das minhas íris.

-Matar-me-ei. Não pisque aí tu, reflexo, que eu não piscarei daqui. O excesso de lágrimas talvez cubra a caixa e nos afogue.

-Mas espere um instante, como conseguimos respirar aqui?

-Respirar?

-Ah, ignore a dúvida.

-Não pisquemos então!

-Certo!


As pálpebras levantadas acima do globo ocular se esforçam por um tempo indeterminado contra a vontade da queda. O esforço é insuficiente. Escuro.


Ato II


Pálpebras erguidas. Face diante do espelho.


-Não funcionou. Nossas glândulas lacrimais estão secas.

-Sem água fica difícil se afogar.

-Justamente.

-E então, quem é você?

-Um idiota diante de um reflexo de um idiota que está refletido na imagem idiota...

-Tá bom, já entendi. E você quem era?

-Importa isso agora?

-Não.

-Então pronto.

-Cansei, acho que vou fechar as pálpebras, o único movimento que me resta.

-Vou também.

-Ok, tchau.

-Tchau.


Pálpebras fecham-se para sempre diante dos olhos.



FIM

quarta-feira, 9 de março de 2011

Náufrago

O ventilador, a brisa artificial

é o meu feriado entre paredes.


A embriaguez me iludiu

falou que tudo era festa

e tudo era alegria.

Até passar o efeito.

Até perceber que eu era um

corpo boiando na corrente.

Até a onda de felicidade

tornar-se calmaria.

Sem aviso.

Vem o maremoto.

Eu no meio.

As ondas brincando

de me jogar.

Me debato.

Tento respirar.


Nadar. Nadar.


Nada.

O afogamento.


Brisa artificial.

Minha ilha.

Minha cama.



Não quero mais saber de carnaval.