Ato I
Sua cabeça numa caixa. Você e o espelho, este suavemente apertado contra seu nariz. Seu reflexo te encara. Os movimentos inexistem. Somente as pálpebras possuem tal privilégio. São as cortinas que ocasionalmente interrompem o espetáculo macabro. O confronto com a própria imagem enquadrada. A guerra contra a existência forçosa. Os olhos miram o desespero com uma ironia refletida ad aeternum. A face é o invólucro da limitação muscular.
-Ah, vida! Que peça me foi pregada! Eu diante de um espelho até a morte! Ao inferno Descartes e o “Cogito ergum sum”!
-Melhor seria não pensar ou, melhor ainda, não existir. Ao menos posso dialogar com o reflexo das minhas íris.
-Matar-me-ei. Não pisque aí tu, reflexo, que eu não piscarei daqui. O excesso de lágrimas talvez cubra a caixa e nos afogue.
-Mas espere um instante, como conseguimos respirar aqui?
-Respirar?
-Ah, ignore a dúvida.
-Não pisquemos então!
-Certo!
As pálpebras levantadas acima do globo ocular se esforçam por um tempo indeterminado contra a vontade da queda. O esforço é insuficiente. Escuro.
Ato II
Pálpebras erguidas. Face diante do espelho.
-Não funcionou. Nossas glândulas lacrimais estão secas.
-Sem água fica difícil se afogar.
-Justamente.
-E então, quem é você?
-Um idiota diante de um reflexo de um idiota que está refletido na imagem idiota...
-Tá bom, já entendi. E você quem era?
-Importa isso agora?
-Não.
-Então pronto.
-Cansei, acho que vou fechar as pálpebras, o único movimento que me resta.
-Vou também.
-Ok, tchau.
-Tchau.
Pálpebras fecham-se para sempre diante dos olhos.
FIM
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