segunda-feira, 14 de março de 2011

Solilóquio do escafandro cúbico diante do espelho

Ato I

Sua cabeça numa caixa. Você e o espelho, este suavemente apertado contra seu nariz. Seu reflexo te encara. Os movimentos inexistem. Somente as pálpebras possuem tal privilégio. São as cortinas que ocasionalmente interrompem o espetáculo macabro. O confronto com a própria imagem enquadrada. A guerra contra a existência forçosa. Os olhos miram o desespero com uma ironia refletida ad aeternum. A face é o invólucro da limitação muscular.

-Ah, vida! Que peça me foi pregada! Eu diante de um espelho até a morte! Ao inferno Descartes e o “Cogito ergum sum”!

-Melhor seria não pensar ou, melhor ainda, não existir. Ao menos posso dialogar com o reflexo das minhas íris.

-Matar-me-ei. Não pisque aí tu, reflexo, que eu não piscarei daqui. O excesso de lágrimas talvez cubra a caixa e nos afogue.

-Mas espere um instante, como conseguimos respirar aqui?

-Respirar?

-Ah, ignore a dúvida.

-Não pisquemos então!

-Certo!


As pálpebras levantadas acima do globo ocular se esforçam por um tempo indeterminado contra a vontade da queda. O esforço é insuficiente. Escuro.


Ato II


Pálpebras erguidas. Face diante do espelho.


-Não funcionou. Nossas glândulas lacrimais estão secas.

-Sem água fica difícil se afogar.

-Justamente.

-E então, quem é você?

-Um idiota diante de um reflexo de um idiota que está refletido na imagem idiota...

-Tá bom, já entendi. E você quem era?

-Importa isso agora?

-Não.

-Então pronto.

-Cansei, acho que vou fechar as pálpebras, o único movimento que me resta.

-Vou também.

-Ok, tchau.

-Tchau.


Pálpebras fecham-se para sempre diante dos olhos.



FIM

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