terça-feira, 30 de junho de 2009

O comedor de papelão

Pôs um generoso pedaço de papelão no prato. Cortou uma de suas arestas, impulsonando-a até a boca. Os caninos rasgaram e os molares trituraram. A língua indicava um sabor estranho, sem-graça e difícil de se engolir. Ainda assim consumiu o pedaço de papelão até o fim. Na sala, caixas e caixas de papelão amontoadas esperando a ingestão. Hora ou outra encontrava um grampo firmemente vinculado a um dos pedaços. Mordia-o e sentia um pequeno incômodo nos dentes. Tinha mais sabor do que todas aquelas caixas, entretanto preferia cuspi-los.
Terminada a refeição, resolveu tirar um cochilo. Jogou um lençol sobre algumas das caixas amassadas e pôs-se a dormir, e quem sabe a sonhar. Não sonhou. Acordou e percebeu que tinha dormido umas cinco horas. Reflexões a respeito do tempo em que passa dormindo veio-lhe à mente. Dormiu cinco horas mas parecia que havia passado uns 5 minutos apenas. Mas isso realmente não importava. Na verdade, o mais importante eram aqueles pedaços de papelão aguardando o ácido gástrico. Resolveu continuar a tarefa anterior ao sono. E assim, uma a uma, as caixas desapareciam, e por mais desagradável que fosse aquela refeição,nunca estava satisfeito.
Por um instante parou e refletiu a respeito. Um minuto de hesitação. Rasgou. Mastigou. Engoliu. Desagradável. Era a vida. Rasgar, mastigar e engolir.

sábado, 27 de junho de 2009

A(s)Simetria

Por que sambar?
Com a batida do pandeiro.
Naquelas pernas trocadas.
Estão minhas idéias estagnadas.
No conforto de um travesseiro.
Com as penas amassadas.
Por que dormir?

sexta-feira, 26 de junho de 2009

As coisas e a Coisa.

As vassouras que outrora limpavam a casa, agora amontoavam-se no porão, com suas piaçavas tortas. As vassouras já não importavam, apenas os seus cabos.
A pilha de incontáveis jornais. As principais notícias, as futilidades e os classificados. Não serviriam mais para informar.
Naquele saco de roupas velhas, destinadas provavelmente aos pobres de algum abrigo, encontraram uma encardida camisa xadrez. O estado da camisa não importava muito.
No fundo do armário, em meio aos últimos cabides, estava suspenso um velho jeans desbotado, com as barras mordidas de tanto encontrar a terra. Foi lavado.
A amarelada camiseta branca, com dois recortes debaixo das mangas e com a aparência amassada, estava imersa na gaveta dos pijamas. Lá não era mais o seu espaço.
Ainda no porão, escondido no meio de entulhos, um remendado saco que já estivera preenchido com esterco. Não teria mais essa utilidade.
Um bom pedaço de couro também encontraram ali. Ganhou costuras e uma forma nova.

Das vassouras, o esqueleto.
Dos jornais, os órgãos.
Da camisa, da camiseta e do jeans, a pele.
Do saco velho, a cabeça.
Do pedaço de couro, o chapéu.
Das coisas, uma coisa.
A face? Não havia. Negaram-lhe uma expressão.

Ganhou um novo posto. Vigilante da plantação.
Quanto tempo duraria?
Espantaria os pássaros?
Quem o criou?
Na verdade, não importava muito. No centro daquela paisagem uniforme passou a estar, e principalmente, a ser.
E assim o espantalho nasceu de restos, viveu estagnado e preso àquela condição. Um dia caiu. Perdeu-se na plantação, foi comido pelo tempo.

Mas existiu. E ele soube.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Lembrança de olaia

Percorrendo o sertão pernambucano entre as cidades de Ibimirim e Sertânia, avistei uma rústica construção através do imundo vidro do meu Opala 95. Observando aquela ilha cercada por poeira e variadas formas de cactos, percebi não haver nenhuma trilha que pudesse me levar até o local.
Tomado pela curiosidade, encostei o carro entre dois chamativos cactos, distantes uns cinco metros fora da estrada de terra, peguei minha mochila e então comecei a caminhar em direção à construção.
Após uma caminhada de uns quinhentos metros com o sol a pino, os poros do meu corpo vomitavam toda a água que me restava. Ainda assim apressei os meus passos e segui cambaleando até me deparar com uma pequena igreja. Não havia nada além de uma torre de uns quatro metros, a tinta branca cobrindo-a e uma rudimentar porta de madeira.
Ajoelhado sobre o chão arenoso chamei por alguém. Só quem me atendeu foi o sol, gritando um calor infernal. Resolvi então empurrar a porta da igreja e percebi que mesmo muito fraco ela havia entendido o esforço de meus braços. Conforme a porta recuava, a luz invadia o ambiente interno, inundando-o parcialmente com um brilho seco. A nave não possuía nenhum banco e as paredes não guardavam vitrais ou pinturas barrocas. Ao invés disso, o branco predominava. Entretanto, uma luz amarela cegava os meus olhos, impedindo-os de enxergar a brilhante coisa que estava no lugar do altar. Me aproximei.
Do chão, erguia-se o tronco de uma olaia de ouro e do tronco estava um único galho grosso. Uma corda amarrada no galho segurava um grande laço. Nesse instante lembrei de um trecho de uma antiga cantiga canção bíblica entoada por minha avó:

Entregou-se à olaia
e justiça ela fez
Vingou o Salvador
e aquele que o traiu
calou-se de uma vez

Era a igreja de Judas Isacriotes, o delator de Cristo. Mas quem teria construído um recanto cristão para o grande traidor dos cristãos?
Uma outra lembrança me veio à cabeça. Três versões de Judas, o conto de Jorge Luís Borges. No conto, um escritor define a partir de estudos, três diferentes perspectivas a respeito de Judas. A última delas é a que me chamou mais atenção. Judas não era o culpado de trair Jesus, o pecado aqui estava além de suas próprias forças. Jesus tinha que morrer para salvar a humanidade e alguém teria que o trair para que isso ocorresse. Judas foi o responsável. Ele apontou Jesus para que ele pudesse salvar a humanidade. E ali, naquele inóspito pedaço de terra, estava um monumento a Judas, o apóstolo que assumiu o trabalho de pecar, de trair o seu mestre para que a humanidade pudesse ser salva.
Logo compreendi que nenhum cristão seria capaz de construir a igreja para um traidor. Ninguém compreenderia. Não havia padre, nem o corpo de Cristo. Havia a forca amarrada em uma olaia de ouro e nada mais. Realmente não tive mais curiosidade em descobrir quem havia levantado os muros daquele templo. Resolvi abandonar o lugar e deixa-lo como eu o encontrei. Voltei para o meu Opala estacionado e retornei para a estrada. A igreja ficou lá. Certamente algum outro viajante passaria por ali. A passagem certamente seria vaga, afinal de contas o sertão e a certeza são terrenos difíceis de serem vencidos e aquela igreja está destinada ao esquecimento daqueles que um dia a encontraram.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Sobre merda e papel higiênico.

Chego até a rodoviária Novo Rio em uma manhã de sábado. Dirijo-me até a fila esperando a minha vez para comprar a passagem Rio X Petrópolis, horário de saída 11:00. Após umas três pessoas, sigo até o guichê e entrego uma nota de 20 reais para o antendente. Em troca, me entrega a passagem e cinco reais de troco. Amasso a passagem e o troco e coloco no bolso da calça. Avisto duas cadeiras livres, em uma fileira com três, e então sento na do meio. No meu lado esquerdo, uma senhora com um lenço na cabeça e a bagagem no colo. No lado direito, uma cadeira livre com algumas marcas de chave.
Como faltavam quarenta minutos para a saída do ônibus, decido pegar um livro e ler. Umas três páginas depois, percebo um jovem casal se aproximando e discutindo:
- Não! Sai daqui. Num quero nada contigo - diz a moça.
- Fabiana, por favor!- retruca o rapaz, segurando o braço dela.
- Me larga!
- Calma...
E a moça senta-se ao meu lado, cruzando as pernas e esboçando um bico de insatisfação. O rapaz se aproxima e continua a discutir. Esforço-me ao máximo para retornar à leitura, mas a discussão parece ficar cada vez mais séria e as vozes elevam-se. Não sei o que fazer. Se fechar o livro, podem pensar que estou atento à conversa. Se me levantar podem me envolver na discussão com comentários do tipo: "Tá vendo! Até o garoto foi embora!". E então posso até ser motivo para mais discussão.
Como ainda faltavam vinte minutos, decidi permanecer na mesma. Finjo continuar lendo. A discussão continua até que a moça esbraveja, soltando a seguinte acusação:
- Você é muito merda! Você é tão merda que não tem dinheiro nem pra pagar a porra do papel higiênico!
Diante da seguinte afirmação, um leve sorriso aparece na minha cara e solto um barulho estranho."Pfff", ou algo do tipo. Mas continuo com a minha interpretação de leitura. Até que escuto:
- ...tá rindo de mim? Tá rindo de mim, seu merda? Fica prestando atenção à conversa dos outros!
Levanto o meu olhar e percebo que está falando comigo. Respondo de maneira surpresa:
- Não não... Só estou lendo aqui.
- Isso. Continua a ler o livro e não se meta na conversa dos outros.

Termino (ou finjo terminar) o capítulo e levanto. Saio rindo da situação inusitada e cinco reais no bolso, que poderiam muito bem pagar o papel higiênico para o merda.